Doze charges, dez delas com caricaturas do profeta Maomé, publicadas num pequeno jornal em um país igualmente pequeno e, em geral, distante de encrencas internacionais, colocaram o mundo islâmico em clima de guerra santa. A histérica reação diplomática dos países muçulmanos, os boicotes econômicos, as multidões enfurecidas e as ameaças de morte dos terroristas mostraram que o fosso de valores, idéias e hábitos entre o mundo islâmico e o Ocidente se aprofundou perigosamente. Dada a dimensão geográfica e humana das partes e em vista das diferenças radicais, vem à mente a famosa metáfora proferida por Winston Churchill quando ele viu o império soviético se agigantar e alienar o resto do mundo. Churchill disse que uma "cortina de ferro" havia descido sobre a Europa. Desde a Guerra Fria não se via com tanta clareza a existência de dois mundos crescentemente hostis e que, rapidamente, esquecem o muito que têm em comum exacerbando o pouco, mas fundamental, que os separa. É um sinal dos tempos – e também um paradoxo. O abismo se torna mais intransponível exatamente em um mundo interligado por comunicações instantâneas e pela intensificação do comércio global. Por que, com tantas condições favoráveis, o diálogo está se tornando impossível?
A resposta mais simples e correta – ainda que não explique tudo – é que o fanatismo diminui as chances de diálogo. O convívio poderia ser harmonioso e mutuamente enriquecedor não fosse o fato de que o poder crescente dos fanáticos esmaga aqueles mais moderados e transigentes. O caso das charges é exemplar por ter colocado em foco alguns dos mais agudos pontos de ruptura entre o Ocidente e o Islã: liberdade de expressão, direitos humanos e o que o jornalista dinamarquês Flemming Rose chamou de "choque de civilizações" entre as democracias seculares e as sociedades islâmicas. Rose, editor de cultura do Jyllands-Posten, o jornal dinamarquês que publicou as charges cinco meses atrás, diz que a crise atual é sobretudo "sobre a questão da integração e sobre se a religião do Islã é ou não compatível com uma sociedade moderna e secular". A idéia de um choque de civilizações não é nova. A expressão foi colocada em evidência pelo americano Samuel P. Huntington, professor de Harvard, num artigo que levou esse título na revista Foreign Affairs, em 1993, e que depois foi ampliado e publicado como livro. Sua opinião é a de que, passados os conflitos causados por interesses divergentes entre Estados-nações, as guerras do futuro seriam travadas entre grandes unidades conhecidas como culturas ou civilizações, cada uma delas constituída de grupos de países. Ele errou no atacado – a ponto de colocar a América Latina como uma cultura à parte do Ocidente e, dessa forma, um inimigo em potencial –, mas apontou com clareza para os indícios de que se ampliava o fosso entre as democracias ocidentais e o mundo islâmico.
EM NOME DE MAOMÉ
A bandeira dinamarquesa é queimada no Paquistão, à esquerda, e usada como tapete na Cisjordânia. Ataque ao escritório da União Européia em Gaza
Quem julgasse só pelas manchetes dos jornais na semana passada poderia pensar que um choque amplo entre o Islã e o Ocidente já começou ou é iminente. Os terroristas da Al Qaeda apareceram na televisão com ameaças de novos atentados em sua jihad contra os "cruzados" e judeus. O Hamas, movimento islâmico conhecido por seus homens-bomba, ganhou as eleições nos territórios palestinos. O mundo tentava encontrar uma forma de conter o Irã e seu presidente-bomba, que ameaça desenvolver um arsenal nuclear. Para o Ocidente, capitaneado por Estados Unidos e Europa, a possibilidade de o Irã, uma teocracia islâmica, ter um arsenal nuclear é o pior dos mundos. O terceiro foco de tensão foi a crise internacional iniciada por um motivo banal – as charges de Maomé – e que mostrou a imensidão das diferenças culturais entre o Ocidente e o mundo islâmico. No ano passado, o jornal dinamarquês Jyllands-Posten soube das dificuldades de um escritor, que queria ilustrar seu livro com desenhos do profeta Maomé, mas não encontrava artista disposto a se arriscar a sofrer as represálias muçulmanas. O jornal então convidou desenhistas a enviar charges sobre Maomé e publicou uma dúzia das que recebeu.
A reação muçulmana foi tomando impulso até atingir seu grau extremo na semana passada. Duas dezenas de países árabes exigiram desculpas públicas do governo dinamarquês e a punição dos responsáveis pelas ilustrações. Um boicote tirou os produtos dinamarqueses – laticínios de excelente qualidade – das gôndolas em todos os países muçulmanos. Na Faixa de Gaza, pistoleiros ampliaram o protesto invadindo o escritório da União Européia e vandalizando a missão francesa. Cidadãos escandinavos foram retirados às pressas da região para não ser mortos. Logo a fúria das ruas muçulmanas se virou contra o espantalho de sempre, Israel e o Ocidente em geral. Os muçulmanos estão incomodados com o fato de as feições de Maomé terem sido desenhadas – o que a tradição islâmica proíbe – e por várias charges mostrarem o profeta como um terrorista. É compreensível que reclamem, mas o tom de guerra santa vai além do que seria razoável. No momento em que um diplomata árabe exige que o Estado dinamarquês puna jornalistas pelo crime de "blasfêmia", o fosso entre os dois mundos se torna transparente.
CHARGES DA DISCÓRDIA
As três charges fazem parte da série do jornal dinamarquês Jyllands-Posten que provocou revolta no mundo islâmico, por fazer piada com Maomé. Primeira página do jornal francês France Soir, cujo editor foi demitido, com a manchete: "Sim, temos o direito de caricaturar Deus"
A disputa sobre as charges de Maomé faz parte de uma série de confrontos culturais similares entre o Islã e o Ocidente, começando pela sentença de morte decretada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini contra o escritor britânico Salman Rushdie, cujo livro Os Versos Satânicos o líder espiritual do Irã considerou "blasfêmia" em 1989. Em 2004, o cineasta holandês Theo van Gogh foi assassinado a tiros e facadas por um jovem muçulmano ofendido com seu filme Submissão, que critica o tratamento dado às mulheres nas sociedades islâmicas. Esses crimes em nome do Islã são, obviamente, obra de fanáticos, mesmo quando ocupam altos cargos em Estados islâmicos. Desde os ataques terroristas a Nova York de 11 de setembro de 2001, um esforço enorme é feito por muçulmanos e não-muçulmanos para separar o fanatismo de Osama bin Laden da fé moderada e pacífica da maioria dos muçulmanos. A reação extremada diante das charges de Maomé faz o contrário, reforçando o estereótipo negativo dos muçulmanos.
O ponto crítico desse relacionamento difícil está na Europa, onde vivem 15 milhões de muçulmanos. Essa migração rompeu a fronteira entre a cristandade e o Islã, que permanecerá estanque por séculos. "Os muçulmanos têm mais dificuldade de se integrar e de aceitar alguns costumes do Ocidente do que outras populações porque vivem de acordo com um conjunto de valores muito rígidos e tendem a se isolar", disse a VEJA o historiador dinamarquês Ulf Hedetoft, da Academia para Estudos de Migração de Aalborg, na Dinamarca. Há vários outros pontos de confronto. A invasão do Iraque pelos Estados Unidos parece feita sob medida para reforçar o sentimento generalizado entre os muçulmanos de que o mundo os persegue.
EXPULSÃO DA TERRA PROMETIDA
Colona judia resiste à investida da polícia israelense na desocupação de assentamento na Cisjordânia: eles crêem que a terra foi presente divino
A disputa sobre as charges dominou a "blogosfera", o ativo e opiniático universo dos blogs na internet. Ali, sem medo e sem censura, a hostilidade latente se manifestou de forma crua. Mike Tidmus, da Holanda, escreveu: "O incidente torna claro que não há lugar para o Islã na Europa se ele não puder conviver com a liberdade. Os muçulmanos poderiam ser aconselhados a voltar para seus reinos de areia, cheios de petróleo, e continuar a matar uns aos outros e a odiar os judeus, os excessos da civilização ocidental, as mulheres e os gays". Boa parte da incompatibilidade do mundo muçulmano com o Ocidente moderno se explica pela noção de que no Islã político não deve haver separação entre vida pública e vida privada, entre religião e política. O diálogo fica difícil com quem se recusa a aceitar que as escolhas humanas possam estar acima das leis que considera emanadas por seu deus. "Não se pode chegar a um acordo com os fundamentalistas justamente porque, por definição, eles acreditam seguir os escritos sagrados ao pé da letra", disse a VEJA o muçulmano Qamar ul Huda, historiador do Instituto da Paz dos Estados Unidos. "É isso que torna o choque com o Ocidente inevitável."
CINEASTA ASSASSINADO
O diretor de cinema holandês Theo van Gogh, foi morto por um fanático muçulmano por criticar o tratamento dado às mulheres islâmicas em seu filme Submissão.
A civilização ocidental assenta-se sobre valores hoje estranhos ao mundo medieval dos fundamentalistas – tanto os muçulmanos quanto os cristãos. Basta um dado. Quatro em cada dez americanos rejeitam as teorias evolucionistas de Charles Darwin. Eles rejeitam a ciência em um assunto científico, preferindo aceitar a tese bíblica de que Deus criou todos os seres vivos. Isso é treva. Mas não se tem notícia de que os adeptos do criacionismo preguem a morte dos que aceitam o evolucionismo darwinista. Do lado islâmico ela é mais espessa ainda. Os fundamentalistas muçulmanos confundem opinião com ação. Isso os leva a agredir e pedir a morte de pessoas que simplesmente discordam deles mesmo que o agravo seja apenas de opinião. John Stuart Mill (1806-1873), o grande pensador liberal inglês, definiu com cristalina clareza a fronteira entre opinião e ação. A primeira deve ser tolerada por mais agressiva que seja – e só coibida quando for um incentivo direto e circunstancial à ação violenta.
NÃO À SAIA CURTA
Os mulás lançaram uma fatwa contra as saias da tenista indiana Sania Mirza
O fanatismo religioso não é patrimônio do Islã. Na semana passada, a polícia israelense precisou usar a força para expulsar colonos judeus de um assentamento na Cisjordânia, um dos territórios ocupados na guerra de 1967. Eles resistiram, convictos de que a ocupação obedece à vontade de Deus. São grupos que podem odiar o alcance global da cultura laica dominante em seus países, mas só muito raramente isso se traduz em violência revolucionária. O Ocidente olha para o mundo muçulmano com desconfiança. Teme suas encrencas, suas mulheres cobertas de véus e seus homens-bombas. O mundo muçulmano tem sido contaminado, nas últimas décadas, por uma versão fantasiosa do mundo desenvolvido, divulgada pelos mulás nas mesquitas: um lugar eficiente, mas sem Deus e, portanto, sem alma. Não há nenhuma razão insuperável pela qual muçulmanos e ocidentais não possam conviver pacificamente. Isso exigiria que cada parte examinasse suas idéias sobre a outra. Em especial, contudo, os muçulmanos precisariam encontrar um jeito de se ajustar à vida moderna.
Fonte: veja.com